terça-feira, 21 de maio de 2013

Conto De Uma Noite De Verão

"Não havia razão para que ele passasse mais uma noite sozinho. Não havia porque ela ficar triste em um sábado à noite"...

O dia amanheceu em Cardiff de um jeito diferente. O frio e a neblina deram lugar a sutis raios de sol que, combinados com a brisa da cidade, faziam parecer que algo especial iria acontecer.

Harry olhou para o despertador antigo que repousava sobre o criado-mudo e viu que já passavam das onze horas. Levantou-se, ainda atordoado devido o sono intenso e desceu para comer algo. Seus pais não estavam em casa, mas sempre deixavam comida para o filho. Dessa vez não foi diferente e sobre o balcão de granito esperava um delicioso croissant. O garoto sorriu, pegou seu café e foi à varanda ver o céu diferente que se revelava naquele momento.

Durante a tarde ele saiu sem destino. Foi caminhar pelas ruas largas do bairro e por lá encontrou seus amigos Owen e Cleaf. Os três se conheciam há pelo menos três anos e costumavam sair para beber e jogar conversa fora. Mais tarde eles repetiriam a tradição: era noite do Baile Anual de Verão do Colégio Tradford. Harry planejara minuciosamente os horários para que não houvesse contratempos. E assim aconteceu, pois ficou cerca de quatro horas com os amigos conversando sobre tudo e sobre nada. São raras as pessoas com quem falamos tão naturalmente. É algo extremamente agradável.

Por volta das 5 horas, Harry voltou para casa e encontrou os pais na cozinha. Cumprimentou-os e seguiu para o banho, pois dali pouco tempo ele buscaria Emily que morava a uns 4 km de Cardiff. Emily. A guria que dança. 16 anos, pele clara, cabelos negros como a noite. Olhos que faziam parecer que as estrelas não brilhavam. Certo temo depois e lá estava o garoto com os cabelos molhados e milimetricamente desalinhados, após o banho e apenas de cueca esperando uma luz para que se lembrasse aonde ele havia deixado sua jaqueta de couro. Pela janela, viu o sol começar a se pôr e as árvores balançando suavemente. Provavelmente estava mais frio agora do que quando chegara em casa, ele pensou.

Continuou se vestindo. Colocou sua calça escura, um par de meias e pôs os sapatos muito bem engraxados. Tudo isso dava um ar muito vintage à Harry, que gostava de parecer assim. E também gostava da palavra, pois soa muito bem. Caminhou até o compartimento de perfumes e escolheu Polo 4: o melhor para a ocasião. Seguiram-se 4 borrifadas e a partir daquele momento a festa tinha começado. Finalmente encontrou a jaqueta, guardada com as coisas de seu pai. Sorriu e voltou para o quarto onde vestiu a camisa branca de finos detalhes prateados da Burberry. Arrumou o cabelo recém-cortado e o deixou levantado na frente, como sempre fazia. Pôs a jaqueta e percebeu que tudo estava perfeito até então. Mas faltava algo para aquela noite ser mais que perfeita...

Na saída, pegou celular, carteira e encontrou seu pai segurando a chave do carro. Harry completou 18 anos há uma semana, mas já dirigia desde os 16. Abraçou o pai, recebeu a chave e caminhou até o Triumph TR6 vermelho que o levaria até a casa de Emily. Entrou no carro, deu a partida e ligou o rádio. Eram os primeiros acordes de Miss Atomic Bomb. The Killers. A noite caiu e trouxe um vento agradável e mais forte. A estrada estava vazia praticamente, Harry pôde olhar a paisagem com tranquilidade. Por fora ouvia-se o ronco do motor. Por dentro,
                          "Miss Atomic Bomb, you're gonna miss me when I'm gone
                                                           you're gonna miss me when I'm gone
                                                                                                       Miss Atomic Bomb"

O relógio marcava 19:15 e as estrelas apareciam no céu escuro. Harry estacionou o carro em frente à casa dela, pegou o celular e pensou em ligar. Mas desistiu. Não de vê-la, só de ligar. Preferiu sair e ir até a porta tocar a campainha. Queria fazer à moda antiga. Cerca de dez passos e lá estava Harry encarando a porta muito bem pintada de branco e certificando se o cabelo continuava no lugar. Tudo checado e ele apertou a campainha. Do lado de dentro um home de cabelos levemente grisalhos atendeu, cumprimentou o garoto e disse que a filha já estava descendo. E assim aconteceu. Emily descia a escada ao mesmo tempo em que Harry perdia o ar.

Ela usava um vestido preto cheio de rendas e um pouco acima do joelho. O contraste era perfeito entre a clareza delicada de sua pele e a cor do vestido. O penteado impecável deixou à mostra os traços do rosto. Novamente via-se o tal contraste entre as bochechas rosadas e os olhos negros. Talvez agora você entenda porque aquele olhar fazia parecer que as estrelas não brilhavam. Trazia o sorriso mais lindo que Harry já tinha visto e, devido ao salto, ficavam quase da mesma altura. Um tímido "olá" e um beijo no rosto fizeram o garoto perceber que tudo aquilo era real. Antes de partirem, um conselho do pai de Emily: -"Juízo. Divirtam-se".

O caminho dessa vez era mais curto: cerca de dois quilômetros. Nem deu tempo para conversarem muito. No rádio, uma canção do Creedence embalava a viagem. Ironicamente, se contradizia ao tempo lá fora.
"I wanna know, have you ever seen the rain?"

-"O céu está bonito hoje" - ela disse.
-"Não tanto quanto você" -ele respondeu.
E ambos começaram a rir pelo simples fato dessa cantada sem querer. Nenhuma explicação isso requer.

De longe já avistavam as luzes acesas no Colégio Tradford. Menos de dez minutos e Harry já estava estacionando o Triumph do pai. Ele saiu e deu a volta para ajudá-la a descer, pois o estacionamento tinha solo coberto por aquelas pequenas pedras cinzas. E como Emily estava de salto, bem você consegue imaginar o que poderia ter acontecido. Saíram juntos de braços dados e ouviram o clique do trancar das portas. 

O prédio do Colégio era um espetáculo a parte. A fachada muito bem conservada e as triunfais colunas romanas da entrada proporcionavam ainda mais estilo àquela noite. Sob a luz do luar, trocaram sorrisos e caminharam rumo ao salão principal. Lá estavam muitos de seus amigos. Harry foi encontrar os bons amigos do Colégio, dentre eles Cleaf e o já um pouco embriagado Owen. Duas garrafas de cerveja estavam vazias ao seu lado e uma terceira, pela metade. Do outro lado Emily encontrou outras gurias. Havia cerca de dez. Duas delas já se entreolhavam de modo raivoso pois estavam com vestidos rosas iguaizinhos. Intrigas à parte, todas saíram juntas. Devem ter ido tirar fotos no banheiro.

Apesar da ótima decoração cujo tema era o fundo do mar e da banda que agora tocava um clássico dos Smiths, estava faltando algo mais pra animar de vez a noite. Agora peço uma licença poética para fazer um paralelo com a vida de todos nós: sempre há aquele amigo comediante por natureza e que, quando bebe, fica ainda melhor. Pois bem, Jake chegou contando a piada do zelador latino com uma garrafa quase terminada de tequila. Todos já sabiam o final da anedota e, portanto, logo perguntaram:

-"Por que você só trouxe isso aí?" - apontando para a garrafa.
-"De onde veio essa, tem muito mais!" - ele respondeu empolgado.

Foi o suficiente para euforia geral dos jovens. Jake fez sinal para que o seguissem e todos foram. Menos Harry. Apesar da vontade de beber, ele precisava reencontrar Emily. Enquanto esperava pela garota, apreciou o som da banda que tocava uma bela versão de Penny Lane, dos Beatles. Quando se aproximava o refrão, duas mãos cobriram seus olhos. Bastou uma inspiração para reconhecer o perfume da guria que dança. Virou-se e começaram a dançar de um jeito bem esquisito - nenhum deles levava jeito para a coisa. Passos tortos, giros descompassados e risos descontrolados resumem tudo o que houve até o fim da música. 

Depois do espetáculo, ele contou à ela sobre a chegada de Jake e suas acompanhantes alcoólicas. Emily sorriu e sem pensar duas vezes arrastou o garoto rumo ao estacionamento. Não era difícil reconhecer onde estava o resto da turma. A uns 30 metros  encostados numa caminhonete preta com a cabine aberta. Dentro, mais de dez variedades de destilados. Apesar do clima contagiante, o frio aumentara consideravelmente. Ao perceber, Harry tirou sua jaqueta e colocou nos ombros de Emily.

-"Não precisa!", ela disse
-"Faço questão", ele retrucou.
-"Eu tenho sorte", ela falou bem baixinho.
-"O que?"
-"Nada, obrigada.". E sorriu.

Ela se aproximou e pegou uma recém-aberta tequila dourada. Deram a volta e Harry ofereceu o primeiro gole a ela.

-"Saúde" - e deu um rápido gole.

Em seguida foi a vez dela:

-"Que fraquinho, você. Aprende a beber comigo", ela ironizou e Harry observou. A guria que dança, de pele clara como o dia, de cabelos negros como a noite e dos olhos mais brilhantes do que as estrelas manteve a garrafa na boca durante quase 7 segundos. Inevitavelmente, duas gotas escorriam e tangenciavam a curva de seus lábios.

-"Falou demais, nem conseguiu beber sem deixar escapar" - ele disse.
-" Me sujei então? Merda!" - ela completou
-"Sem problema, deixa que eu limpo" - respondeu Harry.

Dois passos. Dois olhares. Duas bocas se encontraram. 

Aquele era o momento. Nada poderia atrapalhar. Sob a luz do luar e o brilho das estrelas, perto das melhores pessoas que poderiam ter conhecido. Dois corações tornariam-se um só pelos próximos minutos. Dois é melhor do que um? Talvez. Cada sentido de Harry se aguçava: ele tinha o olfato entorpecido pelo perfume de Emily. A visão propositalmente encoberta. O tato que sentia cada detalhe daquela guria. A audição interrompida pelo barulho ali perto. E o paladar? O melhor do mundo. Uma mistura de Emily e tequila que o deixava perdido. Naquele momento ele poderia jurar por Deus e dizer: "EU ME SINTO INFINITO".

Algum tempo depois eles voltaram à realidade. Restabeleceram a aparência e perceberam que não havia mais ninguém ao redor. Levaram as bebidas para dentro, pois quiseram deixá-los sozinhos. 

-"Quero dançar", Emily falou e partiu rumo ao salão.

Harry ainda estava  atordoado e simplesmente balançou a cabeça positivamente e seguiu-a. Uma corrida leve para alcançá-la e oferecer apoio.Deram os braços, mas não trocaram nenhuma palavra. Lá dentro encontraram os amigos reunidos numa mesa, ainda bebendo e alguns comentando o acontecido. Emily se aproximou, deu um gole curto na garrafa mais próxima e puxou Harry que, por sua vez, puxou os demais para a pista. Como a maioria já tinha certa dosagem de álcool no corpo, começaram a bailar de um jeito muito engraçado. No meio de toda a situação, ele parou e pensou em como aquele sábado ficaria para a história.

Novamente abro espaço para uma explicação: quantas vezes me referi à Emily como "a guria que dança"? Algumas. Porém também disse que ela não levava jeito nenhum para a dança. Como assim, escritor? A guria que dança, dança aos olhos de Harry. Anda suavemente como em um Ballet  Qualquer coisa que faria, significaria música para os ouvidos do garoto e dança para seus olhos. E assim aconteceu durante o resto da noite. Risos, passos estranhos, goles curtos e longos e mais momentos de sensação infinita. Passava da meia-noite quando Harry e Emily despediram-se dos demais presentes. Cada um do seu jeito, como deve ser.

Pela terceira vez caminharam lado a lado naquela noite. Dessa vez, ela com a jaqueta dele. Ele com os sapatos dela nas mãos. Emily ficara menor e ainda mais fofa no tamanho normal. Fizeram o trajeto mais longo até o carro, para evitar tais pedrinhas que antes fariam Emily se desequilibrar e  agora poderiam machucas seus delicados pés. Ao melhor estilo cavalheiro, ele abriu a porta do passageiro, ajudou-a a entrar e aí sim seguiu para o outro lado. Deu a partida e foi pelo mesmo caminho da ida, mas no sentido contrário. Conversaram um pouco sobre tudo. Naquele momento, qualquer coisa era tudo para ambos. Era possível ver a Lua pelo vidro do Triumph. Majestosa, rodeada de pequenos pontos brilhantes. 

Harry resolveu ligar o rádio. Coincidências à parte, novamente o som era The Killers. Dessa vez, Runaways:

"We got engaged on a Friday night,
I swore on the head of our unborn child
                                                              That I could take care of three of us"...

Certos momentos apresentam uma magia inigualável. Magia ímpar, daquelas que nem Hermione Granger seria capaz de reproduzir. Destino, sorte ou atitude. Seja lá o que isso for, é a melhor sensação do mundo. Enfim, a rua silenciosa opunha-se aos dedos tintilantes de Harry e Emily. Os dele no volante. Os dela no canto do banco. Ambos embalados pela ótima canção.

A última curva antes da casa da guria aproximava-se. Harry fez questão de contornar vagarosamente para poder passar mais alguns segundos ao lado dela. Emily recolocou os saltos e ao perceber o desligar do motor, tirou a jaqueta e devolveu-a. Harry precisava sentir-se infinito uma vez mais. Nunca antes a vida tinha tanto sentido quanto agora. Pela última vez naquela noite, Harry passou os braços pelos ombros de Emily e beijou-a como se não houvesse amanhã. Todas as sensações se repetiram. Tudo era como ela planejou durante a tarde. Emily tinha tudo aquilo que ele sempre procurou. Emily. A guria que dança.

-"Preciso ir", ela disse.
-"Tudo bem. Boa noite, guria da tequila".
-"Boa noite, fraquinho".

E bateu a porta do carro. Caminhou até em casa e Harry observou com atenção, respirou fundo e deu a partida. Nunca tinha percebido como Cardiff era bonita. Talvez tão bela quanto Emily. Uma beleza diferente. Ou então ele ainda estava perdido pela mágica daquela noite.

"Não havia razão para ele não ter alguém ao seu lado. Não havia porque ela parar de sorrir". FIM

@Gui_Lorenz